sexta-feira, 2 de março de 2012

Um momento da estrela

Baseado em: A Hora da Estrela
Autoria de Enya Barros


MACABÉA ENTROU NA SALA de Seu Raimundo e repetiu a frase que ouvira saltar da boca de Glória uma porção de vezes, sem a menor consciência de que não possuia o mesmo talento que a loira tinha para a mentira. Na verdade, nada em si poderia ser tão diferente e distante da fartura de carnes e malícia que tão bem definiam a colega.

- Vai arrancar outro dente, Macabéa? – O homem perguntou sem intenção de censurar, numa retórica acompanhada de um suspiro e um aceno de cabeça. – Certo certo, pode ir. Mas entra bem cedinho amanhã, heim.

- Sim, senhor. Muito obrigada, o senhor é um pai pra mim. – A falta de entonação destoava completamente o que fora dito, mas nenhum dos dois se importava com a veracidade ou não das palavras. Macabéa agradeceu mais uma vez e deixou o cômodo abafado, passando pela própria mesa e de Glória, que de tão entretida com a ligação de um rapaz não percebera sua saída.

Desceu a escadaria mal iluminada do prédio onde trabalhava a passos lentos, os ombros caídos e o olhar focado na escuridão que cobria os próximos e próximos degraus. Assim que pôs os pés pra fora, espremeu os olhos enquanto encarava o céu de azul apagado acima de tudo, umas nuvens jogadas aqui e ali. Gostava do céu. Ele era bonito e a lembrava do desejo de ser uma estrela de cinema. Mas ela não sabia o porquê. Só era assim.

- Macabéa! – Assim que ouviu seu nome ser chamado, direcionou a atenção para o outro lado da rua, onde Olímpico acenava efusivamente, fazendo as mais diversas expressões. Nenhuma delas muito boas, é bem verdade, mas Macabéa não notou. Ou talvez expressões como aquela já lhe fossem tão familiares que reação alguma causava. De qualquer modo, ele a esperava para passearem, como combinado da última vez. Quem sabe hoje Olímpico não a pagasse um café de novo.

Atravessou a rua e assim que chegou perto o suficiente, ele disse:

- Mas que demora, Macabéa! Eu num tenho o dia todo não. O serviço na metalúrgica num anda sem mim.

- Me desculpe. – Acenou e manteve os olhos fixos nele, esperando que falasse algo mais. Ela gostava de ouvir o que ele tinha a dizer. Parecia sempre muito importante e cheio de coisas das quais ela não entendia.

Mas Olímpico não parecia ter vontade de conversar aquela hora. Apenas começou a andar sem olhar para trás, certo de que Macabéa o seguira. E ela o fez, apressando o passo até estar do lado esquerdo dele.

Caminharam juntos pelo lado leste do bairro, passando em frente à lanchonete – Macabéa tendo sua expectativa diminuída ao perceber que não tomariam café daquela vez -, e sentaram-se num dos bancos do parque. Não era o mesmo lugar onde haviam se conhecido no último mês, até porque ela não se lembrava com exatidão de onde fora. Mas era bonito também. Tinha árvores, flores e brita cobrindo o chão.

Passaram-se alguns minutos e nenhum dos dois disse nada. Macabéa não tinha o que falar e Olímpico, agora que já gastara todo o discurso de deputado em encontros passados, esperava que alguma das perguntas normalmente feitas por ela rendessem alguma conversa. Mas nem isso.

- Ave Maria, Macabéa. Nem pra conversar você serve. Fosse pra ficar em silêncio eu nem vinha. – Ele reclamou. E não se surpreendeu com o que ouviu:

- Me desculpe. – Olímpico fez um barulho de estralo com a boca, movimentando a cabeça de um modo que parecia estar muito desgostoso. Levantou-se do banco e, do mesmo jeito de antes, pôs-se a andar. E ela foi atrás dele, atenta aos gestos e palavras. E também ao barulho dos carros. De umas pessoas conversando e trabalhando perto dali. Além de uns passarinhos antes nunca notados.

Há alguns instantes, sentira vontade de perguntar o que era o silêncio, mas lembrou-se das repreendas de outras vezes e desistiu tão logo quanto pensou. Mas então ela subitamente parou de prestar atenção naquilo tudo, encontrando um espaço vazio que não sabia ao certo onde estava – se dentro ou fora dela, mas que podia muito bem ser o silêncio sobre o qual não sabia do que se tratava.

Então Macabéa riu para aquilo que ela achava ser o silêncio, sentindo qualquer coisa que não fazia muito sentido, mas era bom.

Aquela fora a primeira vez que ela descobriu sem perguntar.

Sem título e inspiração


Baseado no estilo de escrita de Clarice, não em uma obra em específico
Autoria de Marina Margutti


A CADA LINHA que eu leio mais angustiada eu fico, porque no fundo eu sei que nada do que for escrito só por escrever vai conseguir transmitir a essência dos textos.

As páginas em branco vão se acumulando na minha frente por uma falta de inspiração, aquela coisinha chata, que só nos visita de cinco em cinco anos bissextos. Então como fazer o proposto? Eu não sei.

E meu peito dói angustiado com esse problema, e com todos os que vão se empilhando pelo chão. Errado foi tentar resolver esse problema primeiro, já que ainda me falta aquela coisinha chata, a tal da inspiração.

Como algumas palavras soltas jogadas em um papel podem tentar significar tanto quanto outras que foram cuidadosamente colocadas lá? Eu não sei.

Se alguém ocupa toda sua mente, como sobra espaço pras outras coisas da sua vida? Se esse alguém é mais um problema do que uma solução, como resolver todos os outros problemas jogados no chão? Eu não sei.

Conseguir parar em alguma ideia por mais de um minuto pra tentar dar sentido a isso, me soa impossível, então as coisas vão sendo largadas uma depois da outra como tudo tem sido ultimamente.

Então se isso vai servir ou não, se isso se quer existe, outra coisa que não sei, talvez sejam só pensamentos confusos jogados pelo chão.

Mais uma vez volto aqui, pelos apelos insensatos pra tentar, ou não, dar um rumo melhor a algo que não tem sentido pra minha cabeça.

Mil ideias começam a passar, mas nenhuma delas me parece minimamente digna de nota. Talvez todas sejam e meu senso crítico tenha me abandonado, mas quem sou eu pra julgar minhas próprias ideias? Ninguém.

As ideias vem e vão segundo sua própria vontade, e nunca a minha. O que por hora tem se mostrado completamente inconveniente, porque o que se espera de uma pessoa que não consegue controlar sua própria mente? Nada de bom, garanto.

E pior ainda são as pessoas que não conseguem controlar o próprio texto, ele vai crescendo e tomando forma, ou ficando sem forma, sem controle, ele ganha vida própria e se torna independente.

Afinal o que eu estou fazendo aqui nessa madrugada mesmo? Fugindo dos meus problemas.

Leibnitiz e a transcendência do amor na Polinésia

Baseado em: A Quinta História
Autoria de Ludwig França Guimarães



QUEIXEI-ME DAS BARATAS. Meia-noite, a televisão inútil estava ligada no meu quarto, como numa maneira automática de não ouvir o silêncio. Algum programa de documentários, só escutava o nome de uma tal cidade da Áustria chamada Leibnitz. Depois, uma propaganda, algo sobre lua-de-mel na Polinésia. Mas isso não interessa. Por que deveria interessar, só porque isso faz parte do título da história?

Mas o que interessa é que queixava-me de baratas. O barulho agonizante do caminhar pelos canos até a área de serviço. Lembrei da receita da vizinha: misturar equivalentemente açúcar, farinha e gesso. A farinha e o açúcar as atrairiam, o gesso as faria esturricar. A princípio uma maneira bem prazerosa de assassinato. Seriam mortes lentas e sofridas. Mas naquele dia ainda não tinha me atentado a preparar o terrível veneno.

A verdade é que no dia seguinte queixei-me de baratas. Não havia conseguido dormir ouvindo o meticuloso barulho de suas patas articuladas. Engajei-me cuidadosamente no preparo do feitiço, colocando em partes iguais os ingredientes. Espalhei habilmente o pó branco pelo chão da área de serviço, principalmente ao redor do ralo.

E eis que a madrugada chega. Acordo curioso e queixo-me de baratas. Queixo-me porque não escuto mais o agonizante barulho, que na verdade foi sumindo aos poucos enquanto eu dormia. Chego na área de serviço e me deparo com insetos endurecidos, sujos de pó branco das patas às antenas incluindo as bocas. Com a satisfação de um psicopata, serial-killer ou sei-lá-o-quê, arrasto as estátuas de pedra com a vassoura, ainda babando de ódio descarregado.

Sucedeu-se que continuei queixando-me de baratas por uma ou duas semanas. Apesar de não escutá-las durante o dia, quando elas permaneciam adormecidas e escondidas, sabia que à noite elas recomeçariam a escalada pelos canos até meu apartamento. Mais esperto que elas, preparava logo meticulosamente a minha terrível peçonha. Era uma rotina que logo se tornou viciante, tornando-se uma forma estranha de satisfação. Não existia outra coisa que mais desejava: matar cada barata que existe.

Incrivelmente, passei a queixar-me de baratas. Após uma ou duas semanas, não escutava mais a travessia pelos canos e pelo chão. O pior de tudo é que nem mesmo via sob a escuridão da madrugada os corpos esturricados de gesso. Fui averiguar, e descobri que na verdade havia me queixado de baratas que nem minhas eram: pertenciam ao térreo do prédio, viajavam pelos canos e faziam questão de “dar o ar da graça” na minha humilde residência. Mas o síndico do prédio fez o favor de dedetizar o lar das infelizes ninhadas, de forma que o local ficasse imune ao mísero aparecimento dos tão queixados artrópodes.

Em verdade digo que queixarei-me eternamente de baratas. Desta vez da ausência delas. Como era bom aventurar-me na rotina de preparar meu simplório veneno, já imaginando a textura dos cadáveres enrijecidos pelo gesso. Passei noites em claro, esperando ouvir o lento atrito das patas com o chão. Mas nada escutava. Voltava a ligar a televisão num gesto automático de não querer ouvir o silêncio. Até que um dia escutei falar num programa de documentários sobre lua-de-mel na Polinésia e sobre uma cidade da Áustria chamada Leibnitiz. Descobri que isto na verdade interessa, interessa e muito, mas não porque faz parte do título da história. Representa a transcendência de sentimentos pela qual passei. Amor sublime ódio. Ou talvez apenas o desejo de fuga da minha lucidez para algum lugar longe. E eis que queixei-me de baratas.

Moldando baratas mortas


Baseado em: A Quinta História
Autoria de Breno Pereira, Elusai Soares e Lázaro Silva



NASCI PRA MATAR BARATAS. Descobri isso há muitos anos, quando me iniciei no mundo junto a elas, me apossando de seus pontos fracos e alimentando minha frieza e ganância perante as coisas boas da vida, que dizem respeito só a mim, claro!


Não quero que, logo ao me apresentar assim sem muitos caracteres, façam mau juízo de mim. Não sou ruim, não menosprezo as baratas. Nem posso, apesar de estudar veementemente seus pontos fracos, reconheço que são necessários, não me desfaço delas por eles. Preciso deles, preciso me manter sobre meus próprios pés, não somente isso.

Frieza e ganância? Todos tem um pouco de cada, e não aceito acusações apenas pela minha ânsia de mantê-las.


Mas, e as baratas? Sim, esses asquerosos monstrengos, ora arrepilantes, ora gênios antenados. São espaçosas e exigentes. Se apoderam do meu lar, à noite preferivelmente, quando me retiro do mundo para o merecido descanso. Subindo por paredes, canos ou armários, planejam o meu desassossego, roubam minha comida, sequestram o que antes eu havia me apoderado alheiamente. Não entendem que já conquistei, não desistem do meu completo abandono e esquecimento. E quando se rompe a aurora, fogem quase todas com a minha volta para mais tarde recomeçarem tudo outra vez.


Mas desde o início, eu jamais pensei em me cansar de sua jornada diariamente noturna. É que a cada assalto eu consegui enxergar o interior desses seres, os labirintos de sua mente e os desejos de seus supostos corações. Sua capacidade reprodutora é incrível e o seus ideais “barateses” me comovem amargamente. Porém, me enojam.


O problema das baratas é a negação de sua real capacidade. Como conseguem fazer o mesmo caminho todos os dias, os mesmos planos, e se enroscar na mesma armadilha sem ao menos colocar sua barba de molho? Suas colegas, antes companheiras melancólicas, agora estraçalhadas pelo chão, não as deixam desmotivadas, nem conseguem tocá-las ou fazê-las reconhecer sua sensibilidade. São umas burras, no sentido coloquial da palavra. E aí está o grave ponto fraco. E eu me apodero e me aproveito. Me apodero dessa ganância, tomo-a para mim. Me apodero das baratas, brinco com elas, consigo atraí-las todos os dias com o açúcar da ilusão, elas se deliciam nele, se esquecem de seus desejos “socialísticos” nesse único instante de orgia. Nesse último instante de suas vidas, elas se esquecem da vontade de me ver derrotado, pois sou o único capaz de saciá-las com o prazer mundano. Oh minhas queridas baratas, não se preocupem agora com seus ideais, pois não precisam mais deles. Vocês tem o açúcar, doce açúcar... E nunca mais.


Insistentes por um mundo de liberdade, onde as baratas possam conviver felizes, sem desigualdades entre elas e os maiores. Cheias de visões, sonhos a se realizar, desde sempre imaginavam o meu sumiço para conseguirem a comida de graça, sem lutas. E olhe só como tudo isso se desfaz, feito açúcar em água. O mesmo açúcar que as destroem.


E ao longo da vida, as mesmas armadilhas foram armadas, as mesmas barata caíram. Ingeriram açúcar e gesso, sentiram prazer ao meu molde, eu as impero, faço o que quero com elas. Pois são duros os seus corações, da mesma forma que o gesso enrijece em água. E morrem, morrem em seus erros, em sua ignorância e persistência, na mistura de gesso e açúcar, na ânsia de se lambuzar em consumismo, em impiedade, egoísmo. O gesso te destruiu, pois se escondeu no que parecia bom ao seu gosto, é imperceptível no açúcar quando sua pressa não permite que enxergue o mal que faz a você e seus companheiros.


Pobres baratas, não perceberam que eu me desenvolvo com seus erros. Não nego meu apreço por sua determinação e adoro molda-lás com o meu gesso, com minhas armadilhas diárias. Deixo as portas abertas para que entrem, para que tentem a cada escuridão celestial. Espero que nunca usem sua capacidade.


E adormeço tranquilo, sem nem me preocupar que você se veja como uma barata.


A galinha


Baseado em: A Galinha
Autoria de José do Carmo, José Ronney e Marco Antônio


AINDA DE MANHÃ, não passava das nove e a galinha destinada ao almoço de domingo se encontrava tranquila em seu canto na cozinha, indiferente a tudo que acontecia a sua volta.


               Era uma galinha sem identidade, como outra qualquer, dessas que não se sabe ao menos distinguir se é gorda ou magra, apenas mais uma entre tantas outras... Só não podiam imaginar o que ela estava tramando.


               E desta forma, sem mais nem menos, assustando a cozinheira que ali preparava outros pratos do almoço, alçou um leve voo, inchou o peito e dali alcançou a murada do terraço. Em seguida, já estava no telhado do vizinho, onde permaneceu trepidando por alguns instantes. Enquanto isso, todos da família observavam atônitos, seu almoço em sua fuga desesperada. O dono da casa se pôs a frente e então, refletindo neste momento o quão útil seria não ter uma vida tão sedentária, partiu em busca da galinha.


               Foi uma perseguição intensa nos telhados. Na rua, pessoas que passavam riam de tal situação inusitada que já chegava a outro quarteirão. A galinha, coitada, órfã de pai e mãe, sozinha no mundo, tinha que tomar decisões rápidas diante da iminente captura do pai de família, que nem ele mesmo suspeitava, mas tinha uma alma de caçador.


Ela fugia como se não houvesse amanhã, e realmente não haveria, caso fosse capturada. Porém, mesmo diante dessa situação de vida ou morte, um sentimento lhe invadira e não era o de medo, e sim o de liberdade. Ela finalmente se sentiu um ser capaz de outras coisas além de botar ovos e servir de alimento.


No meio desse devaneio, extasiada por este momento, a galinha foi pega pelo homem e levada de volta pra casa com imensa frustração. Chegando a casa, foi colocada no chão, neste momento, ainda grogue, foi que algo aconteceu. De tamanho nervosismo a galinha pôs um ovo. De forma bastante natural, a galinha se recompôs e já parecia uma mãe experiente, se colocando em cima do ovo e manteve-se aquecendo aquilo que nunca passaria de um ovo.


Assistindo a tudo isso atônita, estava a menina, que logo saiu espalhando o acontecido a todos e implorando à mãe que não matasse mais a galinha, afinal, havia sido uma guerreira. Já com todos da casa em volta da ave, o pai resolveu se manifestar e se postar ao lado da filha em favor da sobrevida da galinha, deixando a mãe irritada, porém conformada.


Indiferente a tudo que estava acontecendo, a galinha havia se tornado uma espécie de realeza na casa, mesmo ela nem se dando conta disso. Permanecia entre a cozinha e o terraço dos fundos, sempre com seu ar de desinteresse e apatia. Ela, vez ou outra, quando sentia que estavam esquecendo-a, tomava o pouco de coragem que lhe restara desde sua grande fuga e perambulava pelas cerâmicas da casa, com seu andar frágil.


Ocasionalmente, recordava de quando fugiu e da liberdade que sentiu acima do telhado, cortando o ar, imaginava também como seria poder cantar, e como se sentiria feliz com esse dom. Porém, nem com todos esses sentimentos e sensações, nada mudava na galinha. A expressão era sempre a mesma, vazia, fosse ela na fuga, ao descansar, ao caminhar, ao bicar o milho ou quando deu a luz, seria sempre uma galinha, como as mesmas que sempre existiram desde o começo dos tempos.


E assim desta forma, um dia ela seguiu o destino das suas, foi morta, devorada e outras vieram.